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O que fazer quando você está dominado pela frustração? Embora boas pessoas tendam a culpar apenas elas mesmas pelos seus problemas, talvez o problema não esteja em você. Talvez o grande problema foi você nunca ter tido acesso aos instrumentos e métodos certos, e por isso tudo parece difícil, frustrante e distante. Assim, essa história é uma bela metáfora que veio de alguém que se sentiu frustrado por muito tempo.
“Você nasceu e cresceu numa pequena tribo que só se alimentava de frutas e plantas. Vocês não tinham o conhecimento de ferramentas, tudo era coletado diretamente pelas mãos. Os saberes necessários se concentravam em distinguir o que podia ser comido e o que não podia, e assim coletar apenas os alimentos da primeira categoria.
No entanto, no outro lado do rio existe uma outra tribo que todos os dias se encontra e enfrenta um animal gigante e assustador: o mamute.
Mamutes, na verdade, não são novidade para você. Eles também aparecem do seu lado do rio. Mas a única coisa que sua tribo consegue fazer é fugir deles, correndo o mais rápido possível quando um mamute aparece.
Essa situação lhe causa profunda indignação. -- "Quero caçar mamutes também! - você pensa - Afinal, se eles podem, por que eu não posso?".
Guiado por tal ímpeto conativo, você inicia um empreendimento pessoal com vistas a poder caçar mamutes também.
Diferente dos demais membros da tribo, você passa várias horas observando o que está acontecendo do outro lado do rio. -- "Como eles conseguem?" - tal pergunta paira sob sua cabeça todos os dias.
Tudo o que acontece do outro lado do rio lhe parece muito complicado, e suas tentativas de reproduzir o sucesso deles na caça aos mamutes são infrutíferas. Sua sensação é de que não há avanço. Você entende que eles manuseiam certa espécie de pau comprido e fino, com alguma coisa na ponta. Mas você não faz a mínima ideia de como fazer um igual ou mesmo de como manusear isso do jeito que eles fazem.
Talvez pior do que a frustração pela falta de avanço em relação ao seu objetivo é o que isso fez da sua vida na tribo.
Desde que você iniciou o seu empreendimento de caça ao mamute, sua capacidade de coleta diminuiu e você está sendo pressionado por isso. Existe toda uma cobrança para você parar de ficar na beira do rio fazendo observações inúteis. A situação consegue se agravar ainda mais quando um mamute aparece na sua tribo. Todos correm de imediato, é lógico. Você, entretanto, titubeia. Sua mente e psique entram num dilema entre a sobrevivência e a necessidade de conseguir capturar – nem que seja num relance – um pouquinho mais da natureza do mamute em cada encontro. Mas, uma vez que o perigo tenha passado, você se torna alvo da ridicularização fácil da tribo:
-- Afinal, você não ia derrubar o mamute? -- Cadê o valentão? - eles provocam.
Até que um dia você toma uma decisão: "vou atravessar o rio!" – você pensa resoluto.
Você logo percebe que essa decisão é quase tão difícil quanto o empreendimento que você começou em primeiro lugar: ninguém na tribo sabe como atravessar o rio.
Inexorável, você procura investigar histórias sobre o rio. Pessoas boas da sua tribo comentam sobre como a madeira morta flutua no rio. O comentário parece fazer sentido. Você observa os troncos de madeira de fato flutuando e começa a fazer seus próprios testes. Seus olhos brilham, como um reflexo de sua mente. A partir desse momento você já sabe que estar à beira do rio implicará um novo objetivo: “Como faço para chegar do outro lado?”.
Agora, a cada dia de coleta, você busca não apenas frutas e plantas, mas também pedaços de madeira que parecem ter a capacidade de flutuar bem. Naturalmente, o resto da tribo não demonstra muita empolgação com seu "projeto paralelo". Todo dia você é lembrado pelo chefe da tribo:
-- Sinceramente, não entendo porque você gasta seu esforço carregando objetos inúteis, mas você sabe que precisa coletar sua parte de frutas e plantas de qualquer jeito.
Embora seu trabalho agora seja dobrado, ele está imbuído de um novo significado. E pela primeira vez você tem um objetivo que de fato você parece ser alcançável! A cada dia que passa você constrói artefatos de madeira melhores, tendo conseguido carregar até uma carcaça para o outro lado de forma bem-sucedida!
Chega então o grande dia de atravessar o rio. Você se prepara com cuidado pois sabe que se falhar, vai ser muito difícil conseguir outra oportunidade. Nem sempre o rio está em condições ótimas de ser atravessado e você sabe muito bem o custo e o esforço de ter conseguido preparar um objeto capaz de atravessar o rio. Se você voltar e tiver que fazer isso de novo, talvez um revés dessa magnitude quebre seu espírito por um bom tempo.
No entanto, a travessia é surpreendentemente tranquila. Você passou tanto tempo se preocupando com ela e fez tantos cálculos preparatórios que o desafio real pareceu até mais fácil do que o previsto.
Ao perceber que finalmente está do outro lado do rio, você sente uma mistura de emoções. Por um lado, você está feliz por ter completado um objetivo que tanto desejava. Por outro lado, você está aterrorizado em realmente falar com as pessoas da outra tribo. Falar com eles significa expor a eles toda a sua ridícula ignorância na sua pretensão em caçar mamutes.
Depois de um período de medo e reflexão – evitando qualquer contato com a nova tribo --, você se obriga a aparecer e se apresentar. "Mas vou permanecer quieto em relação às minhas ambições, vou só me apresentar" - você pensa.
O encontro com a tribo é amigável, mas também sério. O chefe da tribo se apresenta e explica como a tribo funciona.
-- Bem-vindo à tribo de caçadores de mamute. Como o nome diz, aqui nós caçamos mamutes. Como você não possui ainda a habilidade para integrar um grupo de caça, você vai começar ajudando na fabricação de ferramentas. É onde todos os novatos começam.
Você se surpreende com a clareza do chefe e com a organização da tribo. -- “Eles já estão acostumados a receber e treinar novatos como eu”.
No dia seguinte você começa seu trabalho como ajudante na fabricação de ferramentas. Você percebe que essa tribo na verdade contém pessoas de diversas outras tribos. Porém a maioria dessas pessoas são de tribos próximas. Você também percebe que embora você ainda não conheça nada de ferramentas, você é dotado de uma capacidade de observação apurada, que foi refinada por anos de treinamento distinguindo frutas e plantas. Um conhecimento que parece ser ignorado pela sua tribo atual. No entanto, essa observação passa batida no meio de tantas novidades. Sua emoção está a mil por finalmente ter a oportunidade de integrar uma tribo que possui a chave do caminho para ser um caçador de mamutes. “Agora, basta eu me concentrar nas tarefas e fazê-las bem feitas que, em algum tempo, já serei capaz de caçar mamutes! Que diferença de tentar descobrir isso tudo sozinho!” – você pensa em regozijo.
Naturalmente, o caminho de aprendizagem é marcado por altos e baixos, mas a emoção subjacente e recursiva é de orgulho e gratidão pela oportunidade.
Depois de algum tempo, você finalmente é convidado para integrar um grupo de caça. Ao contrário do que você tinha imaginado no passado – que você de repente viraria um caçador de mamutes após uma grande descoberta ou revelação – o caminho foi gradual. O convite não apareceu como uma grande surpresa, você agora compreende que ele é apenas um dos marcos esperados na trajetória de uma pessoa na tribo; isto é, de um proto-caçador de mamute.
Como um caçador iniciante, você segue fielmente os passos dos líderes da tribo, tentando emular seu comportamento até onde é possível. Alguns comportamentos vêm fácil, outros não. Mas você persevera e é cada vez mais percebido como um membro competente da tribo.
Passado mais algum tempo, você está cada vez mais próximo dos líderes. Embora ainda não seja você a dar a ordem final ou a ficar na posição de maior exposição, você já sente que seria capaz de assumir tais tarefas se fosse necessário.
Nesse ínterim, você não deixa de perceber que existem coisas na tribo que podem melhorar. Coisas que, devido à sua experiência única, são bastante elementares para você, mas que parecem estar completamente fora do radar das outras pessoas da tribo. Graças às suas sugestões, cada caçada agora engloba também o mapeamento e a coleta de frutas e plantas, algo que devido a sua utilidade passou a fazer parte constitutiva da rotina da tribo.
Encorajado – não apenas pelo seu sucesso como membro da equipe de caça, mas também pelo sucesso da ideia de integrar a busca por frutas e plantas na caçada – você decide dar um passo ainda mais largo. Você já sabia que algumas plantas podem muito nutritivas, e que outras podem fazer mal, paralisar e até matar: são os venenos. A essa altura, você também já desenvolveu plena ciência do processo de se caçar um mamute.
Você sabe que, várias vezes, vocês conseguem ferir o mamute, mas não o suficiente para abatê-lo, e nesses casos ele acaba fugindo. Assim, você faz uma nova sugestão: usar venenos nas lanças para ajudar no abatimento dos mamutes!
Embora a ideia tenha parecido fácil na teoria, ela demorou bastante tempo para ser introduzida na prática. Havia vários riscos que você não tinha como calcular ou como prever com precisão, e alguns percalços quase fizeram a tribo desistir dessa ideia. Contudo, você mais uma vez persistiu, e no fim a ideia funcionou. Você e outros membros da tribo finalmente conseguiram chegar a um composto que poderia fazer o efeito desejado, sem gerar riscos extremos: o pináculo da efetividade!
Nesse ponto, você já era considerado um dos líderes da tribo. Porém, certo dia, ao se banhar calmamente no rio, um pensamento lhe ocorre: “como sou feliz em ter atingido meu objetivo!”. Mas parecia que algo ainda não estava completo....
No dia seguinte, você junta alguns de seus pertences e chama toda a tribo para um comunicado:
-- Obrigado por tudo que vocês fizeram por mim. Sou extremamente grato por cada bom conselho que ouvi e por cada pequena aprendizagem que só fui capaz de obter por estar junto de vocês. Mas agora eu devo atravessar o rio novamente!
Sua decisão deixou todos surpresos e perplexos, porém só uma criança foi capaz de concatenar a pergunta que todos gostariam de fazer:
-- O senhor é um dos maiores caçadores da tribo, meus pais sempre me contam a sua história. Por que você vai embora? Você não é feliz aqui?
Com um largo sorrido você reponde:
-- Sim, eu sou muito feliz na nossa tribo. Mas a minha jornada aqui já está completa. Como você nasceu na tribo, caçar mamutes é uma coisa natural pra você. Mas pra mim não foi assim, eu vim de uma outra tribo onde nunca ninguém caçara mamutes antes! E tenho pensado muito nos jovens que – como eu – podem ter o mesmo sonho, mas que nunca poderão ter de fato a oportunidade de se tornar caçadores. Assim, preciso cruzar o rio mais uma vez e devo contar-lhes a minha história...
***
Cruzar o rio de volta lhe parece muito mais fácil do que na primeira vez. Ao encontrar sua tribo e contar sobre suas conquistas, você percebe que de fato há vários jovens com a mesma ideia e o mesmo sonho e, assim como você no passado, tomados pela mesma frustração.
Você vê na face de cada um desses jovens a vexação sofrida por tentar perseguir sozinho – sem o apoio algum – um sonho que você sabe que jamais poderia se realizar dessa forma.
-- Caçar mamutes é apenas uma atividade que depende do acesso a todo um corpo de conhecimento - você explica.
-- Esse conhecimento não foi obtido do dia para a noite, e sim foi construído por várias gerações de caçadores. Esse conhecimento está disponível, embora para obtê-lo seja necessário persistir num longo e por vezes difícil processo.
Há de se cruzar o rio.
Michael Araki
Pesquisador-Chefe na Associação Polímata
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