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Esse texto foi escrito para as pessoas que gostariam de poder expressar e perseguir seus múltiplos interesses, mas que se sentem presas por uma cobrança do mundo por um posicionamento como “especialista”.
Existe um acrônimo que está ganhando imensa popularidade nos últimos anos: o VICA (algo que é volátil, incerto, complexo e ambíguo). O aumento do conhecimento e do uso dessa palavra não se dá à toa; de fato vivemos num mundo cada vez mais VICA. Isso traz à tona desafios que dizem respeito tanto ao indivíduo quanto às organizações grandes ou pequenas. Esse pequeno artigo vai focar no embate entre a complexidade do mundo e a complexidade do indivíduo, buscando derivar do encontro dessas complexidades, uma forma de agir que seja positiva para nós e que funcione no mundo.
Uma ideia que defendo é que muitos dos desafios psicológicos e organizacionais que enfrentamos podem ser melhor resolvidos se compreendermos três coisas: (i) o que está por trás das nossas motivações mais viscerais (o aspecto psicológico); (ii) o que está por trás das estruturas organizacionais existentes (o aspecto organizacional); e (iii) como lidar com as motivações, sentimentos e ideias que convivem na nossa pessoa, de modo a gerar a melhor integração possível entre nós e o mundo (o aspecto da integração pessoa-mundo).
A complexidade da pessoa multipotencial
Existem dois pontos de vital importância acerca para se levar uma vida contendo múltiplos interesses que valem uma detalhada reflexão.
O primeiro ponto se refere ao tempo. Muitas pessoas acham que desenvolver polimatia é ser multitarefa. Isso é uma ideia falsa e advém uma intepretação equivocada da ideia de polimatia (que é a junção de abrangência + profundidade + integração). Inclusive, alguns estudiosos como Peter Burke (2014) são descrentes da multitarefa que chegam a dizer que a polimatia deve ser obtida sequencialmente; isto é, focando primeiro em uma expertise e depois em outra. Como diz o adágio popular, "quem quer fazer tudo ao mesmo tempo acaba não fazendo nada direito". Embora incompleto, esse adágio contém um grão de verdade. Não obstante, a depender da sua capacidade de integração, às vezes é possível sim criar sinergias poderosas através de tarefas simultâneas (como exemplo posso citar Nabokov, que escreveu Lolita enquanto viajava numa excursão de fundo científico, para coletar espécimes de borboletas com vistas a satisfazer seu “lado” científico; ou Einstein, que intercalava suas horas de pensamento nas questões mais profundas da física com a prática do violino, o que segundo vários relatos foi fundamental para suas descobertas científicas).
Desse modo, fica claro que desenvolvimento dos múltiplos interesses pode – mas não precisa – ser simultâneo. Na verdade, mesmo quando ocorre de desenvolvermos habilidades simultaneamente, é comum que alguma delas vá tomar prevalência sobre a outra. Esse aspecto de variância de intensidade, junto com a possibilidade de se iniciar e de se abandonar tarefas, levou-me a desenvolver a teoria da polimatia como projeto de vida(Araki, 2018).
Pensar num projeto de vida polímata faz com que a pessoa de múltiplos interesses, em vez de se desesperar por não estar conseguindo fazer tudo o que quer num particular momento de sua vida, desloque seu pensamento para uma escala macro, possibilitando diversos benefícios psicológicos. Veremos um exemplo para ilustrar esse ponto. Digamos que você tenha dois objetivos: você quer viajar o mundo e ser um grande biólogo. Dado que você não seja um bilionário, você tem escolhas excludentes a fazer. Alguém pode argumentar que se você se tornar um grande biólogo, você vai poder viajar o mundo para conferências e palestras internacionais. É verdade. Mas, isso vai demorar uns bons anos, e geralmente, o desejo de viajar o mundo é despertado ainda na juventude, muito antes da pessoa vislumbrar uma carreira como grande biólogo. Além disso, uma coisa é viajar o mundo com o olhar ainda inocente e perplexo de quem tem vinte e poucos anos, outra coisa é viajar aos quarenta anos, profissionalmente, e com filhos em casa. Uma alternativa é pensar cronologicamente. Talvez valha a pena pagar o custo de entrar mais tarde na carreira de biólogo e perseguir primeiro uma profissão que envolva viajar (ex., se tornar comissário de bordo). Assim, pensando num projeto de vida em vez de pensar que cada escolha profissional é única e necessariamente comprometedora para uma vida toda, você aplacaria sua Wanderlust na juventude, e depois correria atrás para buscar seu lugar no mundo como biólogo, mas com a sensação de já ter conquistado um importante prêmio psicológico.
O segundo ponto se refere justamente ao conceito de prêmio psicológico. Esse ponto eu aprendi com o livro "Refuse to choose!" da Barbara Sher (2006), uma autora pioneira na questão da multipotencialidade e da polimatia na esfera popular. O ponto do prêmio psicológico é que a gente não deseja de fato atingir a maestria em todos os nossos múltiplos interesses. Às vezes o prêmio que queremos de verdade é muito mais simples, e muitas das vezes pode ser obtido até rapidamente. Talvez você tenha visto alguém tocar o primeiro movimento da sonata ao luar ao piano e desejou também poder fazê-lo. Talvez você ache que para isso é necessário virar um pianista profissional, mas na verdade basta cerca de um ano e meio a dois anos de estudo aplicado para conseguir tocar essa música perfeitamente bem. Talvez chegar a conseguir tocar a sonata ao luar para o seu prazer (e das pessoas próximas a você) seja justamente o seu prêmio psicológico. Uma vez obtido o prêmio, é possível que o seu interesse decline e mantê-lo sobrevivendo à força devido a uma crença de que abandonar algo é ruim pode gerar um tremendo custo psíquico. Uma coisa é estudar para tocar para seu prazer algumas dúzias de músicas, outra coisa completamente diferente é iniciar uma carreira de pianista profissional. Esta última requer uma configuração totalmente diferente acerca do seu projeto de vida.
Em suma, um projeto de vida polimático deve atentar para o fato de que nossa vida não é tão curta assim (e está cada vez menos curta), e dá para fazer bastante coisa de forma consecutiva. Aliás, o número de coisas que dá para dominar de forma profissional (ou quase profissional) em cerca de 9 a 12 meses de alta aplicação nos estudos é surpreendente, a depender – naturalmente – da velocidade e qualidade de sua aprendizagem (algo que a pessoa polímata acaba sendo "forçada" a trabalhar no limiar). Outra coisa que um projeto de vida polímata deve atentar é para os prêmios psicológicos que a gente busca em cada atividade. Se você atingiu um prêmio, você não é obrigado a se manter nessa atividade a vida toda. Agradeça a todos que te ajudaram, retorne sempre todos os favores e prossiga com sua vida. Se algumas pessoas acharem ruim, paciência, isso faz parte. Abandonar coisas é duro, porém é parte integral do nosso crescimento.
Tendo falado dos dois elementos internos, o tempo e o prêmio psicológico, partiremos para a camada externa: o "mundo".
A complexidade do mundo
Como visto lá no início, o mundo está cada vez mais VICA. Devido aos desafios que um mundo VICA oferece, não é de se surpreender que apareça um movimento histórico contrário; isto é, em direção à simplicidade (ver também Burke, 2014). Isso pode ser feito de várias formas, algumas boas e outras ruins (segundo a ética ou axiologia polímata). Uma forma ruim de se responder ao aumento do VICA é recorrer a simplismos, ao maniqueísmo e ao tribalismo. O raciocínio seguiria do seguinte modo: dado que (i) o mundo é muito complexo; (ii) é dominado por experts de linguagem inacessível à pessoa comum, e (iii) nosso entendimento completo dos fenômenos não é nem de longe possível, ou (I) eu vivo na obscuridade, sem conseguir fazer senso do mundo, ou (II) busco refúgio em respostas (e “líderes”) que parecem ser simples e resolutas. Ao se escolher a opção II, uma falsa harmonia emerge, ao custo de se rejeitar as complexidades.
Por sorte, existem outras formas de se lidar com a complexidade e não precisamos ter que escolher entre viver na obscuridade ou seguir cegamente as ideias de alguém (isso implica que a escolha que eu apresentei acima era na verdade uma falsa dicotomia!).
Uma forma clássica de lidar com a complexidade é via fragmentação. Isto é, pega-se algo complexo, divide-se e cada um cuida de uma parte. Esse é na verdade o modelo tradicional de organização. Devido a esse modelo e aos incentivos encontrados numa organização, muitas firmas procuram pessoas que sejam "fáceis" de se recrutar e de se vender dentro do departamento-alvo, pois elas cabem certinho numa caixinha que foi desenhada num plano de RH de 20 anos atrás. Assim, todos ficam felizes, o recrutador não assume riscos desnecessários com alguém de “perfil esquisito” e o departamento ganha alguém que já está praticamente “formatado”, do jeito que todos esperam! Parece um ganha-ganha, o único problema é que a economia não é algo estático. Tem sempre alguém pronto para estragar tudo com um novo produto, serviço ou modelo de negócio que vai tornar o que é aceitável hoje em algo obsoleto amanhã (ver também a função do empreendedor em Schumpeter; Peñaloza, 2016).
O mundo do conhecimento é outro exemplo de uso da fragmentação. Os fragmentos de conhecimento são chamados por Csikszentmihalyi de domínio, e as pessoas que estão pensando os problemas específicos de um dado domínio constituem o campo. Na esfera do conhecimento, porém, acontece algo muito importante: cada campo joga conforme suas próprias regras e tem seus próprios juízes (ver também Foucault, 2013; e Bordieu, 1996). Isso dificulta um pouco mais a “invasão” de melhores práticas e de conhecimentos de um campo para outro. Ainda assim, isso parece acontecer de modo inexorável, ainda que lentamente em alguns casos. Para quem quer migrar de um campo para outro, é vital ter a ciência de que há campos mais abertos e menos abertos. Tradicionalmente, os campos de "exatas" são mais fechados e os de "humanas" mais abertos. De qualquer forma, para os gatekeepers dos campos, só interessa seu desempenho no campo deles. Todo o resto da sua vida é para eles “sem importância”. E na verdade é assim mesmo que deve ser um bom gatekeeper, afinal é a função dele garantir que o campo não vire uma bagunça. Assim, não tem jeito, para entrar num dado campo, você vai ter que aprender a jogar nas regras desse campo, mesmo que depois você consiga achar um jeito de imprimir seu estilo e jogar de certa forma com as suas próprias regras. Aliás, as pessoas que fazem muito isso correm o risco de serem expelidas do campo e de ter que acabar criando um novo campo, o que pode acabar sendo ótimo, em especial para a sociedade. Porém, para o indivíduo, é necessário desenvolver a sabedoria para saber quando vale comprar uma briga e se você está de fato preparado para isso.
Por fim, há uma última forma de se responder ao mundo VICA. Essa forma eu chamo de integrativa, e seu objetivo é buscar estruturar a incerteza de modo amplo e profundo, utilizando elementos de vários domínios se preciso, algo que demanda muito estudo, muita reflexão e muito cuidado. Contudo, vejo nosso mundo caminhando para esse novo modelo, um paradigma que eu chamei em alguns posts na comunidade científica de integrativismo (ou integrativism em inglês).
A interação entre você e o mundo
Sabendo disso, já deu para perceber que não dá para fugir dos gatekeepers. Dessa forma, quando você for interagir com um deles, você deve salientar e demonstrar seu conhecimento no domínio-alvo. Como notado por muitos pensadores e grandes executivos, como Steve Jobs, a atenção das pessoas é algo muito difícil de se obter. Principalmente os gatekeeperssão treinados para focar em um número de limitado de aspectos que eles conseguem processar. Se eles nunca ouviram falar de polimatia, eles nunca vão conseguir capturar esse aspecto da sua personalidade, e mesmo os que já ouviram falar tenderão a enfocar em outros aspectos. Todavia, se você passar pela fase inicial – isto é, sair do status de naivette (aquele que não sabe nada do domínio) para o status de iniciado ou de aprendiz –, você já estará dentro do domínio e fará parte “deles”. Com o tempo, você naturalmente vai poder imprimir e exprimir sua personalidade dentro do campo, e o melhor: com a aceitação dos pares! Além do mais, ao contrário da maioria – cuja única experiência formadora foi dentro desse campo –, você vai ter um baita trunfo na mão: experiências polimáticas que são raras ou únicas no campo! Ainda assim, não custa lembrar, você só vai conseguir de fato colocar em prática a integração dos seus saberes com o estado da arte do campo, uma vez que você já tenha alcançado um nível respeitável de expertise. Isto é, você vai ter que viver como “um deles” por algum tempo, e por sinal isso será algo sempre cobrado pelos gatekeepers. Mas quando você finalmente conseguir um alto nível de expertise e integração, tudo que antes era fonte de crítica vai virar fonte de espanto e de surpresa para os outros.
Por fim, o mundo é grande, existem uma infinidade de campos e de oportunidades. Mas por outro lado, nossos recursos também são escassos. Não há solução fácil. A dica é pensar de forma mais abrangente, incluindo os elementos do tempo e a prêmio psicológico que você realmente deseja na sua equação, com o fim de tentar encaixar cada desafio atual da melhor forma possível levando em conta o seu projeto de vida polímata!
Referências
Araki, M. E. (2015). Polymathic Leadership: Theoretical Foundation and Construct Development (Masters Thesis, PUC-Rio).
Araki, M. E. (2018, in press). Polymathy: A New Outlook. Journal of Genius and Eminence, 3(1), 58-74.
Bourdieu, P. (1996). The rules of art: Genesis and structure of the literary field. Stanford University Press
Burke, P. (2003). Uma história social do conhecimento 1: de Gutenberg a Diderot. Zahar.
Foucault, M. (2013). Archaeology of knowledge. Routledge.
Peñaloza (abril de 2016). Reflexões Sobre O Lucro Segundo Schumpeter, Clark, Knight e Kirzner. Disponível em https://medium.com/@milesmithrae/reflex%C3%B5es-sobre-o-lucro-segundo-schumpeter-clark-knight-e-kirzner-rodrigo-pe%C3%B1aloza-24-iv-2016-a74ef72b9d49
Sher, B. (2006). Refuse to Choose!: A Revolutionary Program for Doing Everything that You Love. Rodale.
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